PGFN recorre no TCU contra limitação de desconto em transações
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) recorreu, ontem, contra decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de limitar descontos dados pelo governo federal em transações tributárias. Paralelamente, o Judiciário deu a primeira liminar sobre o assunto afastando a restrição dos benefícios para uma empresa. O tema ainda mobiliza a comunidade jurídica: 19 associações repudiam o entendimento do tribunal administrativo e pedem a reversão do parecer por meio de nota conjunta.
Apesar do recurso, a PGFN aplicará as sugestões do órgão nos próximos acordos. Mas preservará descontos nas transações em fase de conclusão e as já celebradas. Segundo a procuradora Mariana Lellis, coordenadora-geral de Negociações da PGFN, a decisão também não afeta o Programa de Transação Integral (PTI), criado para contenciosos de alto impacto econômico, cuja estimativa de arrecadação é de R$ 31 bilhões. Caso haja reversão do acórdão do TCU, as negociações feitas neste período podem ser repactuadas.
Para o tribunal administrativo, o limite entre o desconto e uso de prejuízo fiscal e base negativa de CSLL deve ser de, no máximo, 65%. Pela lei, a redução poderia ser de até 70% para empresas em recuperação judicial. Após aplicado, ainda poderiam usar o prejuízo fiscal e base negativa de CSLL sobre o restante até o limite de 70%. Na prática, com a regra antiga, poderia se reduzir o total da dívida em até 91%, segundo advogados. Agora, a trava global é de 65% e não é permitido atingir o principal.
Na visão do TCU, foram dados descontos ilegais da ordem de R$ 19 bilhões entre os anos de 2020 e 2023, o que viola a Lei de Responsabilidade Fiscal por configurar “renúncia de receita”. O órgão também indicou falta de transparência e de uniformidade nos critérios adotados pela Receita Federal e PGFN.
Segundo Mariana Lellis, a PGFN já tinha consciência sobre alguns itens indicados pela Corte de Contas. Concorda com parte deles e está tomando providências para atender, como o da transparência. Mas a discordância é profunda no item que restringe o uso de créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa no âmbito das transações. “Apresentamos recurso no processo do TCU e estamos confiantes na reversão desse entendimento”, afirmou.
O uso é excepcional, segundo ela. De 1,8 milhão de contas ativas de transação, o prejuízo fiscal foi utilizado em 1,7 mil delas. Mesmo assim, a Fazenda respeita e adotará, por enquanto, o entendimento do TCU nos acordos futuros por cautela. “É importante zelar pela sustentabilidade e ausência de questionamento sobre as transações que a Fazenda firma, esse é um ponto que a gente sempre se preocupou”, diz.
Na visão de Mariana, não haverá impacto no PTI. Isso porque nele o edital em que há modalidade de uso do prejuízo já foi publicado. Por isso, a transação está em fase avançada e será respeitada. “Nesse nível, entendemos que as transações devem seguir em homenagem à boa-fé e segurança jurídica”, diz.
Na visão de advogados, o prejuízo para empresas é “catastrófico” e esvazia o instituto, que representou metade da arrecadação da dívida ativa da União em 2024. A restrição prejudica sobtretudo companhias em reestruturação, pois o Judiciário entende que a apresentação de certidão de regularidade fiscal é requisito para homologar o plano de recuperação. Com a limitação, poucas empresas conseguirão transacionar, pagar os impostos devidos e sair do processo, dizem especialistas.
No caso analisado pela Justiça federal do Rio de Janeiro, a dívida é da empresa Bluecom Conectividade, de informática, no valor de R$ 40 milhões. Ela protocolou em junho pedido de transação individual na PGFN, ainda em análise. Se adotado o parecer do TCU, a dívida seria reduzida para R$ 21 milhões. Se ele for afastado e for aplicada a redução máxima com base na regra anterior, a dívida cai para R$ 9 milhões – um desconto global de 77%.
O juiz Togo Paulo Penna Ricci, da 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro, disse que a Lei de Transações, a nº 13.988/2020, “autoriza a utilização de créditos de prejuízo fiscal e base negativa de CSLL até o limite de 70% do saldo remanescente após os descontos”. “Não há previsão legal de limite cumulativo entre descontos e utilização de tais créditos”, afirmou (processo nº 5130435-31.2025.4.02.5101).
Na visão do magistrado, a interpretação do TCU não é prevista em lei e “configura inovação normativa, em afronta aos princípios da legalidade e da segurança jurídica”. A restrição ainda poderia inviabilizar o acordo da empresa com a União, “podendo gerar impactos econômicos e sociais graves, como risco de rescisão de contratos, demissões e perda de arrecadação futura.
O advogado Thiago Taborda Simões, sócio do TSA Advogados, que atuou no caso, entrou com outras duas ações sobre o tema. “É um erro crasso que o TCU cometeu no acórdão”, diz. “A lei é expressa e prevê uma ordem lógica e cronológica de uso de cada um dos benefícios”.
Na visão dele, a decisão é ainda mais prejudicial para empresas em recuperação. “Inviabiliza o instituto dramaticamente para a maior parte dos contribuintes, porque muitos não vão conseguir pagar se esse entendimento de mantiver”, diz. “Quem está em recuperação judicial, é praticamente impossível, porque já é muito apertado o pagamento do jeito que está”, acrescenta.
Para a procuradora Mariana Lellis, a rápida judicialização mostra o efeito multiplicador da matéria e reforça a necessidade de exame o mais rápido possível pelo TCU. “Para a Fazenda Nacional, é muito cara a ideia de que a transação é uma negociação extrajudicial e cabe à Fazenda balizar a vantagem do acordo”, diz. Em relação à liminar, ainda analisa a conduta a ser adotada.
Mary Elbe Queiroz, sócia do Queiroz Advogados Associados e presidente do Centro Nacional para a Prevenção e Resolução de Conflitos Tributários (Cenapret), uma das entidades que lidera o movimento das associações contra a posição do TCU, diz que o parecer do órgão é totalmente equivocado. “Ele mesmo diz que não está vendo eficácia, mas mostra o número de processos resolvidos e que já foram acordados mais de R$ 700 bilhões”, diz.
Na visão dela, “é a maior política fiscal do Brasil”. “Está transformando as dívidas que a Fazenda não ia mais receber, ao mesmo tempo que está restaurando as empresas”. Ela ainda questiona se o TCU poderia dar decisão como essa. “Ele não legisla e não faz parte do Judiciário, então vamos questionar qual a amplitude do poder do TCU para emitir esse parecer”, diz, indicando que trabalhará no Congresso Nacional para ajudar a reverter o entendimento.
A tributarista Jussandra Hickmann, do Hickmann Advogados Associados, diz que o prejuízo fiscal e a base negativa de CSLL não são benefícios e sim ativos da empresa. “A legislação permitiu que fosse usado para quitação do passivo como se fosse uma moeda”, diz, citando a Portaria nº 6757/2022. “Muitas transações de créditos irrecuperáveis só se perfectibilizaram por conta do uso desses benefícios. Sem isso, as empresas não conseguiriam suportar a parcela”, adiciona.
Procurados pelo Valor, a Receita Federal e o TCU não deram retorno até o fechamento desta edição.
Fonte: Valor Econômico